A Casa da Paixão e o empoderamento da mulher frente ao patriarcado
Neste artigo foi feita uma análise do romance A Casa da Paixão, de Nélida Piñon, buscando observar como a literatura de autoria feminina se caracteriza, a partir de traços de empoderamento feminino em um contexto de patriarcado e objetificação sexual da mulher.
Palavras-chave: Literatura. Feminismo. Patriarcado.
Nélida Piñon possui um estilo de escrita que se diferencia muito dos demais autores contemporâneos brasileiros. A linguagem por ela utilizada, possui uma espécie de “sintaxe pessoal”, e é predominantemente metafórica, o que a torna muitas vezes inacessível para leitores comuns, pelo alto nível de abstração empregado. A escritora justifica-se nesse aspecto, enfatizando que a sua literatura precisa de expressão legítima, e que não convém ao bom escritor adequar-se ao público alvo, pois este será moldado somente a partir da leitura.
Sendo a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (1989) e sempre engajada na luta pelo direito das mulheres e pela expressão feminista, Piñon aponta uma descrença na produção literária feminina por parte da sociedade, ressaltando a necessidade do escritor de enfrentar os obstáculos e se expressar de forma legítima. Pioneira em diversos aspectos, como mulher e escritora de literatura de Língua Portuguesa, em A Casa da Paixão, publicado em 1972, a autora segue por caminhos pouco explorados, como o despertar da sexualidade na mulher, sob a perspectiva de uma personagem e de uma autora femininas, embora a própria escritora rejeite tal rótulo. Sua linguagem rebuscada e poética suaviza os contornos eróticos, e é descrita por ela como “a erotização do verbo. (…) é um grande discurso amoroso de alta densidade erótica, onde se encontram as forças mais misteriosas e obscuras da vida”. (PIÑON, In: PROENÇA FILHO, 1998, p. 4)
No romance A Casa da Paixão, Piñon apresenta quatro personagens, sobre os quais a narrativa é delineada. Em meio a um cenário patriarcal, a protagonista, órfã de mãe, é criada por seu pai e se torna o objeto de um desejo incestuoso por parte deste. Marta desperta a consciência sobre o seu corpo e o corpo do outro, e é mostrada com um ser sexual, diferentemente da santificação e inocência em conflito com a impureza e demonização, ambiguidades em que as mulheres são retratadas comumente na literatura e na arte. Nesse livro, o desejo feminino tão suprimido pela sociedade machista, e por vezes misógina, tem espaço para ser explorado, visualizado a partir da perspectiva da mulher, consciente da sua sexualidade, e consequentemente dona de si e autora de sua história. A casa da paixão, a que o título se refere, é o corpo feminino em destaque. O corpo como cômodo a ser explorado, vivenciado, reformado, e que é livre para ser utilizado não somente para fins reprodutivos, ou a partir de enlaces matrimoniais, mas também, puramente para fins de saciar desejos físicos, tão aceitáveis em indivíduos do sexo masculino, mas praticamente ignorados quando se trata de mulheres. No fragmento a seguir, podemos observar como esse desejo é exposto na narrativa:
“Odeio os homens desta terra, amo os corpos dos homens desta terra, cada membro que eles possuem e me mostram, para que eu me abra em esplendor, mas só me terão quando eu ordenar”. (PIÑON, 1972, p. 48).
No processo de erotização do corpo da personagem, sua consciência como ser humano e como mulher é atualizada, retirando de si qualquer ideologia espiritual. Marta subverte a ordem imposta pelo patriarcado para o gênero feminino e se mostra dona de seu próprio destino, ignorando aquilo a que dela se espera e tomando as rédeas de suas ações.
Outro aspecto muito presente na obra, é a relação da protagonista com os elementos da natureza. As constantes metáforas apresentadas no livro envolvem os rios, as árvores, a terra e os animais e principalmente a figura do sol, por quem Marta se deleita, como pode ser visto no trecho a seguir:
“Seus dedos mágicos trabalhavam em torno apenas e nos momentos penosos consentiu, por misericórdia e fidelidade ao sol, que os dedos, imitando garras, se ampliassem cobrindo-lhe o sexo como o tecido branco do casulo”. (PIÑON, 1972, p. 6).
O pai de Marta, personagem sem nome, homem que governa e sustenta a família, se caracteriza pelo desejo ardente e intenso pela própria filha. Desde que a sua esposa faleceu, ele nunca procurou outra mulher, e desenvolveu uma obsessão por Marta, que ciente de seu comportamento, brincava com os sentimentos e atitudes do pai.
“O pai fingia não ver a rapidez com que fechava as pernas, escondendo tesouros, sabedorias raras, embora não coubesse a ele fecundar sua grata beleza”. (PIÑON, 1972, p. 6)
Esse homem via na filha um futuro certo, como é típico do sistema patriarcal, Marta deveria se casar, e esse seria o único desfecho lógico para o seu destino, seguindo os passos da mãe ao constituir uma nova família. No entanto, ela desmistifica tais projeções, indo de encontro com a ideologia do pai e traçando o seu próprio futuro, que leva em consideração, acima de tudo, suas vontades e desejos.
No entanto, em alguns momentos no decorrer do texto, percebe-se uma devoção da menina em relação ao pai, que pode ser observada a partir do Complexo de Édipo da psicanálise freudiana, exemplo disto está no trecho que se segue:
“Marta adivinhava o pai contrariado com sua dureza escondida tocando piano, gestos de tradição para que a ele quisesse mais ainda e dissesse: eis a filha do coração, com toda a dor da terra”. (PIÑON, 1972, p. 8)
A personagem de Marta, oscila em embates e situações fraternais, o que se configura normal, tendo em vista o contexto machista no qual ela foi criada.
No fragmento a seguir, podemos observar como o machismo era presente no horizonte da narrativa, quando o pai, sente receio da liberdade que a sua filha irá adquirir com o passar do tempo, e afirma querer moldar o seu futuro, para que ela não se arrisque fora dele.
“(…)até o pai compreender com os anos que antes da filha criar novos caminhos, devia ele inventar outros que fatalmente ela percorreria”. (PIÑON, 1972, p. 10)
O romance de Piñon, apesar de publicado em 1972, discute temas e abordagens que estão em pauta na sociedade atual. A causa feminista, em expansão, ainda discute os mesmos conflitos de 40 anos atrás. Podemos perceber um desses aspectos no trecho apresentado a seguir:
“Pretendia que também os homens soubessem, os que a abordavam sem consentimento. Não perdoava a insolência”. (PIÑON, 1972, p. 13)
Em diversos momentos e contextos do livro, Marta se mostra empoderada e dona de si e de seu corpo, não aceitando que a objetifiquem. A sua autoafirmação como mulher e como detentora dos próprios desejos age como fator empoderador.
“Os homens a desejavam como se ela fosse bicho, Marta assegurava-lhes pelo olhar não desconhecer a verdade, mas não a teriam a menos que se decidisse, do meu corpo cuido eu, seu olhar em chamas dizia”.(PIÑON, 1972, p. 14)
Fica claro na produção literária de Pinõn, a tentativa de revisar a política entre sexos e combater as diferenças atribuídas ao gênero, fazendo com que a consciência do corpo seja despertada de forma única e não binária, como quando Marta afirma para Jerônimo que é “livre para aceitar seu corpo, mas não me comande, homem”.(PIÑON, 1972, p.93)
Outra personagem feminina é adicionado à trama. A figura de Antônia, uma espécie de ama, que ajudou a mãe de Marta no parto, e desde então, cuida da menina e da casa em que vivem, suprindo o papel da figura materna que foi perdida na primeira infância.
A descrição de Antônia no texto é praticamente oposta a de Marta. Enquanto a menina se mostra sensual, cheira a flores e desperta desejos entre os homens com quem convive, Antônia é dita como suja, fedorenta, comparam o seu andar ao dos animais, na tentativa de despersonalizá-la, ou quem sabe torná-la de menor importância no contexto a qual se insere. Antônia dormia no paiol, entre as palhas e os bichos, e utilizava da sua “catinga” como estratégia de sobrevivência. O seu estilo de vida e a sua aparência considerada desleixada, mantinha os homens afastados, e protegia Antônia das violências sofridas pelo machismo, numa tentativa de evitar os abusos.
Algumas cenas do cotidiano de Antônia, por Marta descritas, mostravam uma espécie de perversão de sua parte, como quando ela compara a forma de extrair leite das vacas com uma “formosa ejaculação”, ou mesmo numa descrição minuciosa do desejo de colocar o dedo entre as pernas de Antônia, enquanto ela dormia. Esse comportamento pode ser considerado incestuoso, tendo em vista a figura materna ocupada por Antônia na vida de Marta, comportamento similar ao que seu pai apresenta por ela.
O último personagem apresentado é Jerônimo. Ele é trazido para a história pelo pai de Marta, na tentativa de que eles se casem. No início da narrativa Jerônimo mostra apenas obedecer as vontades do patriarca e justamente por esse motivo ele é rejeitado por Marta, que o deseja secretamente. No decorrer da história, podemos observar nele um ser delicado, com características ditas femininas, e uma espécie de submissão pelo que lhe é estabelecido e pelo que considera autoridade. O desejo que ele nutre por Marta, faz com que o personagem evolua e se torne senhor de suas decisões — mostrando que não somente as mulheres precisam de empoderamento, por isso a eterna busca entre igualdade de gênero- e é essa mudança brusca em sua postura perante a situação, que faz com que um interesse mútuo seja desvelado. Observemos o trecho a seguir:
“Está enganado, velho, vim porque obedeci no início, mulher eu sempre quis, destino de homem é resolver-se sobre coisas valentes e abusadas, obedeci então, a filha acusou-me de ser teu servo, fui até agora, mas meu tempo de servidão terminou, pois escravo tem tempo certo, vive e morre, cumpre ciclo, o meu está esgotando (…)” (PIÑON, 1972, p. 56).
Nesse episódio, Jerônimo se expressa pela primeira vez no livro. Sua atitude de enfrentamento ao patriarca, revela a sua força interior, que cansou de servir e quer ser dono das próprias ações. Essa atitude inesperada por parte dele, desperta o interesse real de Marta, que decide finalmente se entregar a ele, culminando na cena final, em que os amantes se entregam ao desejo carnal, em meio a natureza e com a afirmação de suas vontades, dissipando o contorno de suas diferenças sexuais em uma espécie de epifania coletiva, e tornando o corpo de Marta a real Casa da Paixão, que nomeia o romance.
REFERÊNCIAS
MONIZ, Naomi Hoki. A casa da paixão: Ética, Estética e a Condição Feminina. Revista Iberoamericana 126 (Jan.-Mar.1984): 129–140.
PIÑON, Nélida. A Casa da Paixão. Rio de Janeiro, Record, 1997.
PROENÇA FILHO, D. A inquieta ficção de uma mulher cidadã e escritora. Folha de São Paulo. São Paulo, 26 set. 1998. Ilustrada, p.4.
ZOLIN, Lucia Osana. Autoria feminina e poder: a narrativa de Nélida Piñon. In: VIII Congresso Internacional — ABRALIC 2002, 2002, Belo Horizonte. Mediações — VIII Congresso Internacional Abralic — Anais. Santo Amaro SP : NovoDisc Brasil Indústria Fonográfica Ltda, 2002.